sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O último voo

 Antonio Carlos Garcia 

(accarlosgarcia@estadao.com.br)

 Sempre defendi que os pássaros jamais deveriam ficar presos em gaiolas ou viveiros, mas sim vivessem em liberdade até o fim dos seus dias. Essa defesa se transformou em contradição quando compramos aqui para casa, há quase dois anos, um calopsita, atendendo a um desejo do meu filho, João Pedro. A gaiola era apenas para que Leleco – nome dado por João a ave – bebesse água e se alimentasse. No mais, ele andava naquele passo cadenciado por toda a casa e, sempre, por volta das 18 horas, se aboletava embaixo da cama do dono e de lá só saia pela manhã bem cedinho.

 Como Leleco não vivia dentro da gaiola, eu dizia que ele cumpria uma espécie de prisão domiciliar, mesmo sem condenação nenhuma, pois circulava pelo apartamento, ia para rua devidamente acompanhado pelo dono, interagia com outros calopsitas dos amigos de João. Já chegamos a ter uma assembleia de calopsitas. O que elas decidiram, não sabemos porque não tínhamos como traduzir a linguagem deles.

 Mas há linguagens de aves e animais que são traduzidas pelo coração. Leleco ficava sozinho algumas horas do dia, quando estávamos trabalhando e João na escola. Parece que ele conhecia nossos passos. Bastávamos colocar a chave para abrir a porta e o barulho era reconhecido. Leleco começava a piar bem alto de alegria e andar pela sala.

 Essa empatia entre nós e a ave era recíproca, acredito. Bastava observar as atitude deles para perceber isso, pois ele estava sempre por perto de nós: na hora das refeições, bicava nossos pés; na hora de ver televisão, lá estava ele no sofá, nos nossos braços ou ombros; ou, ainda, no escritório, quando estávamos lendo ou trabalhando, ele também marcava presença. A solidão, decididamente, não era o seu forte. E também não nos víamos mais sem essa presença serelepe.

 Acompanhamos seus primeiros voos pelo apartamento. Mas não aprendeu direito a pousar. Eram pousos atrapalhados. Ele que sequer voou num céu de brigadeiro. Mas viajava de carros conosco para onde quer que fôssemos. E sempre estávamos viajando nos finais de semana. E onde chegava Leleco era acolhido, mas também observado por outras criaturas. Um gato ficou enamorado por ele, mas não precisa pensar muito para saber quais as intenções do felino.

 Nesse Carnaval, Leleco fez sua última viagem e seu último voo. Estávamos em Salvador, e na segunda feira à noite, nosso amigo quis voar pela cozinha da casa de amigos que nos abrigava. Mas eis que ele foi em direção de duas enormes cadelas – uma dobermann e outra pastor alemão. De corpo frágil, bastou o tombo de uma das cadelas para Leleco sucumbir.

 O mundo de João Pedro desabou. Tínhamos um fio de esperança na vida, “que é bonita e é bonita”. Prestamos socorro. A veterinária auscultou Leleco, mas seu coração já havia parado. Ao tomar conhecimento da morte, João se desesperou. Começava aí uma grande lição para ele e todos nós. Pela primeira vez, João lidou com uma grande perda. Como ele mesmo comentou, mais calmo, “chorou todo estoque de lágrimas que tinha” e depois nos surpreendeu quando disse que “teria que superar isso”.

 Enquanto João soluçava e chorava, a mãe, sempre diligente e atenciosa, procurava consolá-lo e dava-lhe força para superar tal problema. Os amigos, que nos abrigavam em Salvador, foram igualmente solidários. Pedrinho, amigo do João, também compartilhou a dor da perda, disse-lhe palavras de consolo e mostrou o quão são importantes as amizades nascidas na inocência da infância.

 E eu procurava algo para dizer para consolar meu filho, até que fui buscar ensinamentos no Livro dos Espíritos, de Alan Kardec. Lendo atentamente, encontrei o que queria na pergunta 600, quando é questionado para onde vai o espírito do animal depois de morto. A resposta: “O (espírito) do animal, depois da morte, é classificado pelos Espíritos a quem incumbe essa tarefa e utilizado quase imediatamente. Não lhe é dado tempo de entrar em relação com outras criaturas”. Ou seja, o espírito de Leleco está dando vida ao corpo de outro pássaro. Talvez outro calopsita. Só Deus e os espíritos encarregados de tal tarefa o sabem.

 Na quarta-feira de cinzas, quando começava a Quaresma, Leleco foi enterrado nos jardins do local onde moramos, na presença dos amigos. Como acontece com todos os seres vivos quando morrem, o corpo voltará ao pó. Pouco a pouco, vamos nos acostumando com a ausência da ave, mas sua imagem ficou na lembrança de todos e bem representada num quadro pintado pela artista plástica Rosa Edna Ferreira, tia de João, imortalizando-o.

 João Pedro está aprendendo a lição que a vida lhe proporcionou e, certamente, essa passagem vai lhe ajudar a tornar-se uma pessoa valente – como disse a amiga Verônica Araújo, avó de Pedrinho. O bom senso manda que não subestimemos os sentimentos das crianças e que temos a obrigação de dar-lhe a devida importância para que ajudemos na sua formação e superação.

 Ele soube através deste episódio, que a vida é feita de perdas e ganhos. E continuará aprendendo que, entre erros e acertos, momentos felizes e decepções, nós nos construimos a cada instante. Que a cada manhã, quando o sopro da vida nos anima, tudo que passamos na vida terrena deve ser encarado como uma oportunidade para nossa evolução.

Nenhum comentário: